Nipo-brasileiros compõem a maior população de descendentes de japoneses fora do Japão, estimada em 2 milhões de pessoas. Algumas famílias já estão no Brasil há mais de 3 gerações, e existem termos específicos para se referir a cada uma delas. Eu, por exemplo, sou sansei, o que significa que pertenço à terceira geração da minha família estabelecida no Brasil.
Eu não entendia muito bem essa ideia quando criança, nem por que sempre me perguntavam se eu era nisei ou sansei. Eu nasci no Brasil, meus pais também, e saber disso me era suficiente. Não tenho nada contra o conceito em si, o que me intriga é que pessoas brancas gostem tanto de fazer essa pergunta. Algumas até já emendam a piadinha “você é nisei, sansei, ou não sei?”. É como se a gente tivesse que se identificar de acordo com esse referencial. Sou brasileiro não é uma resposta válida. Ou sou nisei, ou sansei, ou um degenerado que já não conhece suas origens.
Ao mesmo tempo que sinaliza que pertenço ao grupo de pessoas identificadas como japonesas, a definição de sansei implica que não sou tão japonês assim. A minha língua materna é o português e a cultura que sempre permeou a minha existência foi a brasileira, com apenas alguns resquícios da cultura japonesa que minha família carrega. Ainda assim, me chamam de japa na rua e, frequentemente, me perguntam se sei falar japonês.
É sobre não generalizar
A essa altura, todos que assinam a newsletter já devem ter percebido que o Japão é uma temática recorrente por aqui. O próprio nome da newsletter é uma palavra japonesa, e em várias edições acabo trazendo algum aspecto da cultura e da língua, seja a partir de um filme, seja a partir de um ditado popular.
Bater na tecla de que sou brasileiro enquanto vivo falando do Japão pode soar contraditório. Por isso, cabe aqui esse disclaimer: meu interesse pessoal é realmente pessoal. Preciso deixar claro que nenhum amarelo tem obrigação de saber ou mesmo ter qualquer interesse na cultura do país de seus ancestrais. Isso é tão óbvio que parece até desnecessário dizer, mas acho que todo amarelo já foi cobrado de alguma forma, mesmo que sutil.
A experiência coletiva dos amarelos no Brasil me motiva a escrever esse texto muito mais que minha experiência pessoal. Se alguém perguntar se sei japonês, não ligo, aliás, espero em breve conseguir responder que sim, mas não represento o todo. Sou um caso particular que desenvolveu esse interesse ao longo de sua história de vida, e não é justo que se espere isso de todos nós com base exclusivamente em nosso fenótipo.
Denominações
Aos poucos, nós amarelos vamos encontrando uma linguagem mais adequada para nos definir. Não somos japoneses, mas a vida inteira nos acostumamos a ser chamados e nos chamarmos de japoneses, sendo que existem formas mais adequadas de se referir a nosso grupo racial. O termo amarelo, que também contempla descendentes de chineses, coreanos, entre outras origens do Leste Asiático, é o ideal, por se referir ao tom de pele, uma característica meramente física. Oriental, japonês, asiático, todas essas passam a ideia de que viemos de fora.
Volto a salientar que cada amarelo vai lidar de uma forma com as denominações. Meu texto foi uma tentativa de trazer a minha perspectiva, que eu acredito que reverbere com a de outros amarelos, mas ao invés de tentarmos restringir como se deve ou não se referir a nós, cabe tentar entender cada um com suas preferências, e até perguntar se necessário. No meu caso, não ligo de ser chamado de japonês. Aprendi a me familiarizar com a ideia de que ser chamado de japonês não me torna menos brasileiro.
A única denominação que eu definitivamente desencorajo é oriental ou asiático, porque são termos carregados de estereótipos. Pode reparar, qualquer discurso sobre sermos orientais vem acompanhado de algum comentário sobre sermos reservados, disciplinados, inteligentes e não sei mais o que. Pode soar como elogio, mas só constrange e nos faz sentir inadequados por não corresponder à expectativa.
Representatividade importa
Quando adolescente, eu era fissurado em Linkin Park, um dos maiores sucessos mundiais daquela época. Linkin Park é uma banda estadunidense, tendo em sua formação dois integrantes amarelos: Mike Shinoda, vocalista/tecladista/guitarrista, e Joe Hahn, DJ/diretor/artista visual. Esses dias, ouvindo Fort Minor, projeto solo do Mike, fiquei refletindo sobre o Linkin Park ter sido tão importante para mim na adolescência, o que passava por eu gostar muito do som deles, mas ia além. Eu via no Mike e no Joe uma perspectiva de ser notado no ocidente sem ser visto como um estrangeiro, e sim alguém tão ocidental quanto qualquer outro.
Pensar nisso me incentiva a seguir me dedicando à escrita. Não necessariamente para militar pela causa amarela, mas para que as pessoas saibam que os nipo-brasileiros também fazem os seus próprios corres. O meu é escrever. Tem aqueles que decidem se tornar médicos, outros abrem pastelarias, simplesmente porque pessoas se tornam médicas, abrem pastelarias etc. Cada um se dedicando àquilo que, pessoalmente, se sentiu inclinado a fazer, o que acaba sendo atravessado por expectativas da sociedade, mas eu sinceramente aspiro que esses atravessamentos tenham cada vez menos força, e que possamos cada vez mais ocupar espaços que façam sentido em nossos corações.
Por falar nisso
Em seu projeto solo, Mike Shinoda gravou uma música chamada Kenji, que aborda a experiência de membros de sua família ao serem levados ao campo de concentração de Manzanar, após ataque do Japão a Pearl Harbor. Mike canta “They gave Ken a couple of days/ To get his whole life packed in two bags” (eles deram alguns dias a Ken para empacotar toda a sua vida em dois sacos), baseado nos relatos de membros de sua família, civis que tiveram que sair de suas casas imediatamente ao ataque, e sequer tinham malas para carregar a bagagem. Ao final da letra, Mike também aborda o clima hostil aos japoneses que seguia reverberando após o fechamento do campo. “Written on the walls and the floor, japs not welcome anymore” (escrito nas paredes e no chão, “japas”1 não são mais bem-vindos).
Nessa matéria para a Revista Trip, a ilustradora Carol Ito traz um amplo panorama do preconceito que amarelos sofrem no Brasil, cuja visibilidade é apagada pelo mito da minoria modelo, que nos atribui qualidades “positivas” como as que mencionei no texto.
O livro Corações Perdidos da Celeste Ng, autora norte-americana de ascendência chinesa, descreve um futuro distópico onde pessoas sino-americanas passam a ser censuradas e estigmatizadas como potenciais ameaças à cultura norte-americana. Para além disso, é uma história sobre não endurecer o coração, mesmo diante de situações de extrema injustiça.
Ainda sobre pessoas amarelas vivendo no Ocidente, não posso deixar de mencionar o filme Vidas Passadas, em que a protagonista não é apenas uma descendente de coreanos vivendo no Ocidente, mas alguém que passou os primeiros anos de vida na Coreia e efetivamente tem conexões com o país, que vêm a tona por meio de um amigo de infância. Filme lindo e recomendadíssimo!
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Nos Estados Unidos, jap se tornou um termo pejorativo para se referir aos imigrantes japoneses durante a Segunda Guerra e por isso seu uso é considerado extremamente inadequado até os dias de hoje. Traduzi para japa por ser também uma abreviação e uma forma de estereotipar, embora seu teor seja bem menos ofensivo.
muito bom! estava conversando com meu marido esses dias, não lembro bem o assunto, mas era sobre a melhor forma de denominar e a gente não sabia qual era, visto que tenho um amigo de descendência japonesa e não gosta de ser chamado de japonês. obrigada por explicar.