Mês passado, escrevi sobre o entendimento de que a mente está localizada no coração, subvertendo a ideia predominante na cultura moderna de que a mente é um produto do cérebro.
Escrevi também sobre o ideograma que representa coração, presente em muitas palavras da língua japonesa referentes à mente, lido como shin.
Aqui, na segunda parte sobre esse tema na news, apresento um outro significado do ideograma 心: essência. Para isso, recorro ao Sutra do Coração, um dos sutras mais estimados e recitados dentro do Budismo.
Obs: Esse texto é um pequeno ensaio sobre um tema budista. Seja budista ou não, sinta-se a vontade para seguir a leitura, mas apenas se tiver interesse, e estando ciente de que sou apenas um praticante sem nenhuma qualificação, compartilhando um pouco do que andou pesquisando ultimamente.
A essência da sabedoria
O hridaya sutra, em sânscrito, ou shingyou (心経), em japonês, é um dos muitos textos tradicionais que tratam da sabedoria de prajna: ver as coisas como elas realmente são. E por que ele é chamado de Sutra do Coração? Porque ele contém a essência desses ensinamentos. É a opção mais indicada para quem não gosta de textão.
Não é que ele seja fácil de entender.
O Sutra do Coração se propõe a questionar todos os nossos pressupostos sobre a existência das coisas, inclusive aqueles produzidos pelo próprio caminho budista. Em certo ponto, o Sutra dirá coisas como não haver caminho, nem sabedoria, nem realização, nem mesmo a não realização. De acordo com o Sutra, todos os fenômenos tem a natureza da vacuidade, ou ausência de existência inerente1.
Karl Brunnhölzl, professor e tradutor na comunidade Nalandabodhi, se aprofunda no significado do Sutra em um livro chamado “O Sutra do Ataque do Coração”2, publicado em português esse ano pela Lúcida Letra. Sobre o aspecto paradoxal do Sutra, ele diz:
Em resumo, o que podemos dizer com segurança sobre o Sūtra do Coração é que ele é completamente louco. Quando lido, não faz nenhum sentido. Bem, talvez o começo e o final façam sentido, mas tudo no meio parece uma sofisticada forma de absurdo, que pode ser considerada como a característica básica dos sūtras Prajñāpāramitā em geral. Se gostamos da palavra “não”, poderemos gostar do sūtra, porque essa é a principal palavra usada - não isso, não aquilo, não qualquer coisa. Nós também poderíamos dizer que é um sūtra sobre sabedoria, mas é um sūtra sobre louca sabedoria. Quando lemos, ele parece insano, mas é exatamente aí que entra a parte da sabedoria.
Segundo Karl, vacuidade significa que as coisas não existem como parecem, mas são como ilusões e como sonhos. O Sutra do Coração vai direto a esse ponto, por isso ele é chamado assim: ele contém a essência do ensinamento, em uma linguagem muito direta.
Versão japonesa
A versão do Sutra do Coração recitada nas escolas japonesas do Budismo é uma transliteração da versão traduzida para o chinês por Xuanzang (604-664 EC).

Assim, ainda que a fonética usada seja a da língua japonesa, os japoneses não recitam o Sutra em japonês. Estar estudando japonês não me ajuda em nada a decifrar o Sutra, mas, conhecendo um pouco o seu conteúdo e reconhecendo algumas palavras (como o nome Shariputra, que na versão japonesa fica Sharishi, e a repetição das sílaba fu e mu, que imagino equivaler aos vários ‘nãos’ do Sutra), sinto alguma familiaridade com a recitação.
Na Sanga em que pratico, recitamos o Sutra em português. Ainda assim, não tentamos guardar aquelas palavras como se estivéssemos tentando dominar determinado assunto. Não é como tentar decorar a fórmula de Bhaskara (ainda assim, decorar o Sutra é uma decorrência natural de recitar ele de novo e de novo). Estamos nos familiarizando com a sabedoria da vacuidade, independentemente do idioma em que as palavras são pronunciadas.
O Sutra culmina na recitação do mantra em sânscrito: “gate gate pāragate pārasaṃgate bodhi svāhā”. A versão japonesa também mantém o mantra recitado em sânscrito, com apenas uma leve diferença na pronúncia: “gyatei gyatei haragyatei harasogyatei bodhi sowa ka”.
É uma benção ter acesso a essas diferentes versões do Sutra. Ao mesmo tempo que elas se aproximam, elas também manifestam as particularidades das culturas em que ele se estabeleceu, e evidenciam que a sabedoria não tem uma forma única e definida.
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Links desta edição
A versão japonesa do Sutra do Coração musicada, acompanhada de dança.
Vídeo na Wikimidia Commons de monges japoneses recitando o Sutra do Coração muito rápido.
Link para comprar o livro “Sutra do Ataque do Coração” pela Lúcida Letra, indiciado especialmente para quem já tem alguma familiaridade com o Sutra. A tradução para o português é de Stela Santin. Ao comprar direto da editora, você:
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Conta-se que, quando Buda deu esse ensinamento, alguns alunos com alto grau de realização ficaram tão chocados em constar a vacuidade do próprio caminho que tiveram um ataque do coração e morreram, o que inspirou o título desse livro. Se essa história é metafórica ou literal, o importante é que ela ilustra o quão impactante pode ser esse ensinamento.