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Aqui você encontra reflexões sobre minha vivência como nipo-brasileiro e estudante de japonês, entre outros temas que me movem.
Na língua portuguesa, a palavra coração costuma evocar sentimentos, especialmente de amor e afeto. Diferentemente, na língua japonesa, existe a palavra kokoro, que, embora traduzida como coração, também pode se referir à mente. Comum entre as culturas asiáticas, essa acepção causa um estranhamento nas culturas ocidentais eurocêntricas, onde a mente é associada exclusivamente à função cerebral, enquanto apenas as emoções são atribuídas ao coração.
Um bom exemplo dessa diferença é a série em quadrinhos 'Heart and Brain' (Coração e Cérebro), feita por Nick Seluk (The Awkward Yeti). Nela, os personagens principais são o cérebro, que tenta resolver os problemas de forma lógica, e o coração, que age seguindo as emoções.

Gosto de pensar que a série não é sobre cérebro vs coração, mas sobre diferentes formas de lidar com as situações.
De uns tempos para cá, tenho buscado trazer mais o coração para as minhas decisões (ou as minhas decisões para o coração?). Não necessariamente agindo de modo impulsivo; o ponto é não pensar demais a ponto de ficar empacado. Explorar uma dimensão mais intuitiva e espontânea da mente.
O pensamento discursivo tenta encaixar a realidade em conceitos bem estruturados e coerentes. Ele tem opiniões próprias sobre como as coisas deveriam ser, mas a realidade tem ideias diferentes.
Por outro lado, a mente ligada ao coração é mais livre e criativa. Mesmo que siga um planejamento, ela sempre improvisa em alguma medida, momento a momento, se comunicando com a complexidade das situações, entregando aquilo que pode entregar em cada circunstância. Se era melhor ter feito X e não Y, ela vai avaliar depois.
Ideogramas e sua versatilidade
Outro aspecto interessante na língua japonesa é a versatilidade da escrita. Os caracteres de origem chinesa, conhecidos como kanji, são ideogramas que podem ser usados em palavras com significados bastante diversos.
O kanji lido como kokoro (心), quando aparece sozinho, denota coração ou mente, mas também faz parte da formação de outras palavras, onde passa a ser lido como shin. Se você quer se referir ao coração enquanto órgão físico, por exemplo, a palavra é shinzou (心臓). Outras palavras que levam esse kanji incluem preocupação (shinpai - 心配), tranquilidade (anshin - 安心), determinação (kesshin - 決心) e psicologia (shinri - 心理). Esses exemplos se relacionam à ideia de mente ou coração, mas o kanji pode carregar outros significados (que pretendo explorar em breve, na parte 2 deste texto), como essência ou centro.
O coração ao longo do tempo
A origem da escrita chinesa é essencialmente pictográfica, ou seja, composta por símbolos que representavam ideias ou objetos de forma ilustrada. O pictograma que deu origem a kokoro (心) representava a forma do coração.
Naturalmente, esse sistema de escrita sofreu transformações ao longo do tempo. Em muitos casos, as pictografias originais eram muito mais fiéis àquilo que representavam do que os kanji dos dias de hoje. Os traços vão ficando mais abstratos, possivelmente para viabilizar uma escrita mais fluida.
No caso de kokoro, acredito que a mudança não só se aproximou mais da forma real de um coração, como evitou um outro probleminha nos dias atuais.

Eu até consigo visualizar um coração no pictograma, as curvas no topo representando os átrios. Acontece que quem concebeu esse pictograma não previu que, muitos séculos depois, as pessoas associariam essa forma a outra coisa.
Segue uma versão mais sugestiva, a primeira com que me deparei nas minhas pesquisas:
A mente é criativa, amiga. Com 5 riscos os chineses criaram uma figura ambígua suficiente para parecer dois órgãos absolutamente distintos entre si. Igual na Coréia, que, com duas letras, se criou uma rede de lojas de conveniência que rende uma risadinha de qualquer falante do português brasileiro.
Quinta série à parte, eu realmente gosto da forma atual do kanji. Tem simplicidade e elegância, o que cai bem em uma representação do coração. É meu kanji favorito no momento. Pela sua forma e pelo que ele representa.
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Kotoba indica
A IA que usei para dar uma força na revisão do texto e outras tarefas como texto alternativo para as imagens é a claude.ai. Gosto mais dela que do ChatGPT.
Você já teve ter visto algum letreiro “Eu ❤️ [insira aqui a cidade]” em suas andanças por aí. Aline Valek investiga essa e outras estéticas virais no podcast Bobagens Imperdíveis.
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Até a próxima!
Não sei se você conhece a Beth Kempton. Ela acabou de lançar um livro chamado Kokoro que ainda não li, mas seu texto me fez lembrar. Li o wabi sabi e amei. Ela é londrina, se não me engano, mas apaixonada pela cultura japonesa, e chegou a morar no Japão por alguns anos. Alias, adorei a edição 🫀
Falando de coração, ficou muito bom!!! A espera da parte 2.👌