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O filme Corações Sujos, baseado no livro homônimo de Fernando Morais, retrata um período após o fim da Segunda Guerra Mundial, em que muitos japoneses que moravam no Brasil se recusaram a acreditar que o Japão tinha se rendido. É um filme violento, mas que suscita questões bem relevantes sobre esse período histórico e para além dele.
O conflito começa de um jeito familiar a todos nós, a partir de uma polarização: parte dos japoneses residentes no Brasil não aceita a notícia de que o imperador japonês declarou a total rendição do Japão na guerra. Outra parte, embora igualmente decepcionada, se conforma com os fatos. Essa discordância foi suficiente para que o grupo que se recusava a acreditar na derrota classificasse quem acreditava como kokuzoku (traidores da pátria) e promovesse uma série de ataques armados e assassinatos.
A raiva, evidentemente, não segue uma lógica. Havia inúmeros motivos pelos quais os japoneses poderiam se revoltar: a xenofobia no Brasil, o fato de terem sido doutrinados por tanto tempo a verem o imperador japonês como um ser infalível (ou imbroxável, num linguajar mais contemporâneo), ou porque seu país foi alvo da mais perversa arma de destruição em massa. O grupo Shindo Renmei1, no entanto, decidiu se voltar contra seus conterrâneos, só porque eles seguiram em frente, tentando se adaptar como fosse possível à vida no Brasil.
O grupo negacionista se amparava no assim chamado “espírito japonês”, um código de honra que promovia a morte como uma forma de redenção. Foi esse espírito japonês que originou o seppuku2, uma prática que foi ganhando um ar de heroísmo entre os samurais e simpatizantes.
Cá entre nós, não há nada de heroico no suicídio. Heroico é viver mesmo se sentindo uma pessoa indigna. Viver até perceber que atitudes, estas sim, podem ser indignas, mas essa classificação nunca dá conta de descrever uma pessoa, em toda a sua complexidade.
Mishima
Falando em pessoas e suas complexidades, não posso deixar de fora dessa edição um dos autores japoneses mais intrigantes do século XX. Nunca li nenhuma de suas obras, mas comecei a me interessar por sua personalidade quando uma colega da livraria mencionou sua inclinação pelo fisiculturismo. Eu acho que foi essa falsa dualidade que a gente coloca entre o corpo e a mente que me fez receber essa informação com surpresa. Um escritor fisiculturista? Ah vá.
A partir daí comecei a querer saber mais sobre o sujeito e, nessa brincadeira, fui descobrindo toda a sua idiossincrasia. Além do culto ao corpo, Mishima também cultuava um Japão tradicional, imperialista, conservador. Mishima temia a influência crescente do ocidente sobre a cultura japonesa. Em novembro de 1970, reuniu um grupo de estudantes tradicionalistas para invadir uma base militar, exigindo que o exército fosse convocado para ouvir um discurso que havia preparado. Recebido com repúdio pelos militares, no fim, decidiu praticar o seppuku em frente a todos.
A escritora Marguerite Yourcenar, autora de uma das biografias de Mishima3, considerou o seppuku a sua última obra de arte. Não há dúvidas que Mishima estava querendo mostrar algo nesse ato. Se fosse um mero suicídio, não precisaria ter montado todo esse cenário e escolhido um método tão agoniante.
Seja qual tenha sido a intenção de Mishima e todo o pano de fundo cultural por trás de seu ato, eu volto ao ponto que dá título à essa edição: precisava disso tudo? Ele encerrou sua vida precocemente, interrompendo todo um potencial que nunca saberemos o quanto ainda poderia oferecer ao mundo, sem falar no possível trauma gerado nas pessoas ao seu redor.
Escrevo isso amparado na visão budista de que a vida humana é uma oportunidade rara de ser encontrada. Entre todas as formas de vida possíveis, a vida humana é que a proporciona maior potencial para cultivar uma mente compassiva e amorosa. É por isso que matar a si mesmo ou aos outros é considerada uma ação não-virtuosa, e não porque tenha alguma entidade superior que irá nos condenar por termos sidos maus.
Uma gota a menos de rancor
O sofrimento permeia nossa experiência, mas podemos nos comprometer a não adicionar camadas desnecessárias a ele. Pema Chödrön, no livro Acolher o Indesejável, escreve assim: “Como muitas gotinhas que enchem um balde de água, é preciso muitas pessoas como eu guardando rancor das outras para criar uma sociedade polarizada. Eu realmente não quero ser uma dessas gotas.”
Tendemos a nos sentir muito justificados quando agimos a partir do rancor. Quando vemos casos extremos como o do grupo Shindo Renmei ou do Mishima, podemos até pensar que são situações muito distantes da nossa realidade, que eles é que perderam o bom senso. O meu rancor, sim, tem embasamento. A questão é que eles também se sentiam muito embasados, senão não fariam o que fizeram.
O que está em jogo não é qual lado está certo e qual lado está errado, mas nossa tendência a fincar uma bandeira naquilo que chamamos de verdade, o que automaticamente levanta um ringue de nós contra eles. Mishima recorreu a meios hostis para lutar contra a ocidentalização do Japão, mas também foi recebido com hostilidade. Como ele não encontrou espaço para se expressar pelas palavras, decidiu se expressar pelo choque. A política de repressão aos japoneses no Brasil e sua liberdade para preservar a própria cultura favoreceu a desconfiança de que as notícias desfavoráveis ao Japão fossem mera calúnia. Embora nada disso justifique suas atitudes, certamente serviu de combustível para o fogo.
Esse último parágrafo foi um terreno perfeito para que eu testemunhasse a polarização em mim mesmo. Enquanto tento ver pela perspectiva deles, parte de mim se coloca contra. Não tem “mas”, eles perderam a razão e ponto. No lugar deles, eu certamente agiria com mais dignidade. Pensar assim é o meu padrão habitual.
Sair de si mesmo não é uma tarefa trivial, é como se o umbigo nos puxasse sempre de volta, mas é a única tarefa que temos, se quisermos superar toda e qualquer forma de conflito. No mínimo, nos poupamos de uma algumas camadas desnecessárias de sofrimento.
O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.
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nome do grupo terrorista que perseguiu e assassinou japoneses que acreditavam na rendição do Japão na guerra.
ritual de suicídio em que se cortava o próprio ventre, acreditando-se que tal morte, bastante sofrida, redimia o samurai de sua derrota.
Mishima ou a visão do vazio / Marguerite Yourcenar ; tradução de Mauro Pinheiro. - São Paulo: Estação Liberdade, 2013.