Não sou capaz de odiar a June
Minha opinião sobre Yellowface, de R. F. Kuang, e um comunicado importante sobre a news.
Yellowface, publicado no Brasil pela Intrínseca como Impostora, com tradução de Yonghui Qio, é o melhor livro que li esse ano.
June Hayward é uma mulher branca que rouba um manuscrito em andamento de sua amiga Athena Liu, logo após sua morte acidental. A voz narrativa em Yellowface é da própria June, que conta como esse manuscrito foi parar em suas mãos, e como, a partir daí, ela resolveu desenvolver sua própria versão daquele enredo. June alega que começou a mexer nas palavras de Athena “despretensiosamente”, como um exercício criativo, até perceber que valia a pena publicá-las em seu nome. Como se não bastasse o roubo, o enredo em questão gira em torno de um tema ao qual June era completamente alheia até então: um grupo de trabalhadores chineses recrutados para servir ao exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial.
Uma editora chamada Eden, totalmente alheia à origem da obra, aceita o manuscrito, e O último front é então publicado sob autoria de June Hayward, e o nome Juniper Song, como passa a ser identificada, ganha os holofotes.
Nunca me interessei muito pelas obras de R. F. Kuang, mas assim que Yellowface foi lançado no Brasil, eu soube que precisava ler esse livro.
O que mais mexeu comigo foi o misto de sentimentos em que me vi em relação a June, a plagiadora, apropriadora da cultura alheia.
Levando em conta todo o conjunto de circunstâncias envolvidas em seus atos, eu não consegui realmente odiá-la. Porque June, ainda que responsável pelo que faz, é reflexo de algo muito maior que ela.
Ao longo da narrativa, fica óbvio que June manipula os fatos para se justificar, mas em muito momentos, eu me via entendendo o ponto de vista dela, quase como se comprasse o seu argumento. Ela elenca todo um conjunto de circunstâncias que a levaram a tomar as decisões que tomou.
A cada tentativa de encobrir seus erros, June se enrola mais. Ora ela age por conta própria, ora ela só acaba assentindo com decisões duvidosas porque convinha aos seus interesses.
A ideia, por exemplo, de adotar o nome Juniper Song, veio da equipe de comunicação da editora que publica o livro. June não parece muito confortável com o malabarismo velado para omitir a sua identidade racial,
Ninguém comenta que “Song” pode ser confundido com um sobrenome chinês, quando, na verdade, é um nome que minha mãe inventou durante sua fase hippie nos anos 1980 (…)
mas também não chega a se opor, porque o recurso desvia a atenção do fato dela ser uma mulher branca escrevendo sobre um tema referente à história da China, e acaba se alinhando à estratégia:
Emily me ajuda com uma matéria sobre identidade autoral e pseudônimos para o Electric Lit, em que explico que tomei a decisão de me reposicionar como Juniper Song para honrar meu passado e a influência de minha mãe na minha vida. (…)
Yellowface
Aqui, cabe nos voltarmos para o título original, e o próprio conceito por trás dele. Assim como blackface se refere a pessoas não pretas interpretando personagens pretos, yellowface se refere a atores não amarelos1 interpretando personagens asiáticos. Por extensão, alguém se passando por asiático sem o ser pode ser enquadrado como yellowface.
A princípio, June se apropriar da obra de Athena não se caracteriza como yellowface. O roubo e apropriação do conteúdo do manuscrito é apenas isso: um roubo, uma sacanagem. Ela nunca chega a efetivamente se passar por uma pessoa amarela, mas insinua através de elementos ambíguos como o sobrenome Song e o próprio fato de escrever sobre um evento tão específico na história da China. Para June, nada disso é problemático, mas ela não hesita em problematizar o questionamento (antes mesmo que ele viesse) sobre uma mulher branca, de repente, decidir escrever sobre a China.
Enquanto repara nos vieses das pessoas amarelas, June não percebe o viés em seu próprio ponto de vista. Ela claramente tem mais empatia por pessoas brancas do que amarelas. Na sua opinião, na versão original de Athena, os soldados franceses e britânicos eram caricaturas racistas.
Em vez disso, trocamos um dos brancos malvados por um personagem chinês, e um dos trabalhadores chineses com mais falas por um fazendeiro branco que simpatiza com os imigrantes.
Ela tem um ponto válido: uma história fica mais rica se você der uma borrada na linha entre vilões e mocinhos. Só que ali, claramente, ela não estava preocupada com a complexidade da história, mas apenas em passar um pano pros brancos. Tem quase um nível de ingenuidade na June em achar que Athena tem um ponto de vista tendencioso e ela não. Mas June simplesmente reflete a visão hegemônica de que o branco é a norma, o ponto de vista neutro, e quem se coloca como vítima é que está sendo racista.
Irmãos perdidos
Achei uma escolha muita acertada de Kuang construir essa narrativa na voz de June, mergulhando em seu ponto de vista.
A narrativa de June revela seu lado problemático, mas também o seu lado humano, uma pessoa que sente muito medo, e por isso tem uma visão estreita do mundo. Além disso, uma pessoa que não quer se ver como a vilã da história. Ela nega ser racista porque, enfim, ninguém quer admitir que é racista. E assim, o racismo se perpetua.
Isso me faz pensar em como a gente combate o racismo. Se a gente simplesmente rotula a pessoa como racista, não há espaço para reflexão.
Recentemente, fiquei muito impactado com a carta que James Baldwin escreve para o seu sobrinho adolescente, que compõe a primeira parte do livro Da próxima vez, o fogo. Sobre os brancos, Baldwin escreve:
Mas esses homens são seus irmãos — seus irmãos perdidos, mais novos. E, se a palavra “integração” significa algo, é o seguinte: que nós, com amor, devemos obrigar nossos irmãos a se verem como são, a deixar de fugir da realidade e a começar a mudá-la. Afinal, esta é sua casa, meu amigo, e não permita que o expulsem dela: pessoas grandiosas fizeram coisas incríveis aqui, e vão fazer novamente, e podemos fazer desta terra o que uma nação deve ser.
Na ocasião: os Estados Unidos comemoravam 100 anos da abolição da escravidão no país:
Você sabe, e eu sei, que o país está comemorando cem anos de liberdade cem anos mais cedo. Não podemos ser livres até que eles sejam livres.
Que todos e todas, sejamos livres, enfim.
⚠️ Aviso: a kotoba entrará em hiato…
por tempo indeterminado.
Depois de um hiato de 40 dias, preciso admitir que não estou dando conta de manter uma regularidade no envio da news.
Decidi, portanto, oficializar o hiato, o que significa que não tenho a menor previsão de quando vai sair uma próxima edição. Por enquanto, quero colocar na balança o quanto eu quero me envolver com essa atividade e, mais do que isso, o quanto ela está me fazendo bem.
Escrever não é o problema, mas o tempo e energia que dedico em escolher as palavras, imaginando como elas vão chegar em quem está do outro lado da tela. Tem todo um cuidado em entregar um material de qualidade, mas tem também toda um anseio por causar uma boa impressão, e não quero que a escrita reforce essa minha tendência. Por ora, quero ficar de boas, fazendo coisas legais que eu não precise que os outros vejam para fazerem sentido.
Além disso, sinto que está na hora de levar os estudos a sério e, para isso, preciso abrir mão de algumas atividades.
Esse ano fiz um simulado do JLPT, maior exame de proficiência em língua japonesa no mundo, e pude constatar duas coisas: 1 - meu nível de compreensão da língua melhorou esse ano; 2 - poderia ter melhorado muito mais se eu tivesse estudado direito.
Quero chegar ao final de 2025 entendendo e falando japonês. É uma meta ousada, mas perfeitamente possível. Eu já tenho uma base que me permite estudar por conta própria, além estar frequentando um curso para me dar um maior direcionamento. O que me falta realmente é colocar mais energia nos estudos.
Oferendas musicais 🎶
Para fechar bem essa temporada da newsletter, duas recomendações musicais para embalar seu final de ano:
Aimyon e 1000 jovens de 18 anos cantando Futaba para o 18FES, um evento musical anual promovido pela NHK desde 2016. Para sua realização, há um processo seletivo onde vários candidatos enviam vídeos contando suas histórias. Um artista convidado se junta a 1.000 desses jovens, performando uma música especialmente composta com base nas narrativas compartilhadas. A apresentação de Aimyon ocorreu em 2021, por isso, os participantes se apresentam remotamente. Há uma comoção adicional nessa apresentação por ocorrer após esse período provavelmente árduo na vida desses jovens.
Nessa época do ano, não posso deixar de indicar a música Merry Christmas, Mr. Lawrence, pelo eterno Ryuichi Sakamoto (in memoriam), que sempre me transmite uma sensação de tristeza enternecedora. A performance abaixo foi gravada em 2022, quando Ryuichi Sakamoto estava com a saúde em declínio por conta de um câncer, e decidiu gravar uma última apresentação solo, que deu origem a um documentário e um álbum chamado Opus. Na descrição do vídeo, se conta que:
Opus originates from Sakamoto himself. In his words: "The project was conceived as a way to record my performances - while I was still able to perform - in a way that is worth preserving for the future."
Desfrute:
Apoie
Se esse texto te tocou de alguma forma, compartilhe em suas redes através do link abaixo.
Fale conosco
Me conta o que surgiu por aí lendo esta edição. Você também pode conversar diretamente comigo, basta responder ao e-mail, ou escrever para dalmo.kawa@gmail.com.
Aproveita que está aqui e já me segue lá no Instagram também.
Feliz Natal!
Nos EUA, me parece que o termo yellow (amarelo) ainda tem uma carga bastante pejorativa. Aqui no Brasil, nós com ascendência leste-asiática temos nos apropriado do termo, ressignificando o seu uso.