Pessoas com doença celíaca não podem comer nada que leve trigo na composição, o que inclui a maioria dos pães. Existem opções sem glúten tanto caseiras quanto prontas, mas uma dá trabalho e a outra custa caro, então dificilmente serão parte de uma dieta diária. As alternativas mais práticas e acessíveis acabam sendo a tapioca e o biscoito de arroz. Assim como o pão, o sabor é meio insosso, mas é só passar alguma coisa em cima que é sucesso.
Vai fazer três meses que cortei o glúten da dieta. Também tenho introduzido hábitos mais saudáveis no meu cotidiano, como a prática de atividade física. Queria poder juntar tudo isso e dizer como eu sou uma nova pessoa, como tudo se transformou na minha vida, só que isso soaria tão falso quanto dizer que o Bill Gates tem soluções para enfrentar a crise climática1.
Por um lado, sim, tenho ido bem na tarefa de encontrar alternativas aos alimentos com glúten, meus sintomas estão se amenizando, e tenho conseguido manter uma prática regular de atividade física, o que também ajuda a recuperar a minha saúde. O problema é a esperança implícita de que, colocando tais coisas no eixo, eu estaria livre dos perrengues.
Uma vez que nascemos, teremos que enfrentar a doença, o envelhecimento e a morte. Por mais que eu cuide deste corpo, o que devo fazer da melhor maneira possível, ele está sujeito à ação da impermanência. E esse pensamento é chave para contrapor as falsas esperanças. Se a impermanência é certa, o que quer que aconteça com meu corpo não deveria me surpreender. O corpo muda o tempo inteiro.
E isso vem tanto para o mal quanto para o bem. O desconforto, a dor, ou seja lá o que for, também são passageiros. A alimentação, especialmente, é um campo rico para se contemplar a impermanência. Aquilo que a gente come rapidamente deixa de ser o que era para virar energia, parte do nosso corpo, ou só cocô mesmo. Algumas coisas não caem bem, como o glúten no meu caso, mas mesmo assim, o corpo vai dando um jeito de processar aquilo que entrou e reparando os danos aqui e ali.
Nem em sonho
À noite, minha mente trabalha para processar a nova situação da minha vida. Ora sonho que estou escolhendo produtos sem glúten no mercado, ora sonho que não encontro nada que não tenha glúten; mas o pior tipo de sonho são aqueles em que eu lembro tarde demais que tenho intolerância. Uma vez, sonhei que tinha pedido uma pizza e só me dei conta da burrada na hora que a pizza chegou. “oh carai, agora vou ter que comer, né?”
É como se minha mente, no sonho, criasse cenários hipotéticos com que eu posso me deparar durante a vigília. “Ok, suponha que você esqueça por completo que tem doença celíaca por alguns minutos e pede uma pizza. Detalhe: você está com fome. O que você faz?”
Já descobri que minha tendência é ir pelo caminho mais preguiçoso, mesmo que ele custe o meu bem-estar. Não me ocorreu, no sonho, de chamar uma ou duas pessoas para comerem a pizza por mim. Na minha mente estreita, a realidade era eu versus a pizza.
Hábitos mentais e culturais
Uma mudança radical na dieta não é uma tarefa trivial. Não poder mais comer certas coisas, ainda mais quando são alimentos com um apelo calórico, que instigam as parte mais instintivas do cérebro, não é fácil. Some-se a isso o fato de que esses alimentos são os mais presentes em eventos sociais. Acho que essa é a parte que vai demorar mais para eu saber lidar daqui para frente. Nessa terça-feira mesmo, deixei de ir em um evento para livreiros, pensando nos possíveis comes e bebes que eu teria que dispensar. Não comer pão de queijo é uma coisa, não comer pão de queijo quando todo mundo está comendo pão de queijo é outra.
Desvio de rota
Essa edição estava sendo pensada para compartilhar avanços nesse meu novo estilo de vida, o Notes está aí para não me deixar mentir. Eu gosto de trabalhar com as palavras porque diante dos meus olhos surgem minhas próprias fantasias, me permitindo avaliar onde elas batem ou não com a realidade. Evidentemente, essa avaliação vai moldando o texto também.
Ainda assim, revisitando o que escrevi no Notes, a conclusão segue válida: todo e qualquer perrengue é um convite para eu lembrar de ser gentil com meu próprio corpo e mente. Eu acrescentaria a conclusão de que meu trajeto, seja lá em qual percurso for, não é linear, nem chega a um lugar final onde enfim estarei com tudo arrumado. Sempre surge um pepino (ou uma pizza) no meio do caminho.
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