Você parece o kung fu
Pessoas amarelas eram uma minoria na EMEF JM.
Quando Jack apareceu eu estava na quinta ou sexta série. Alunos novos sempre atraem olhares, mas a coisa toma outra proporção quando é alguém vindo de outro país. Jack nasceu e cresceu na China, e sua família tinha chegado há pouco tempo no Brasil.
Duas coisas me marcaram naquele dia. A primeira delas foi a repercussão que a chegada de Jack gerou na escola. Não é que ninguém nunca tivesse visto um chinês na vida antes, muito pelo contrário, todo mundo adorava os filmes daquele outro Jackie que viviam passando na Globo. Mas Jack estava ali, dividindo o mesmo espaço que o nosso.
A segunda coisa que me marcou foi que, para os meus colegas, era quase como se Jack fosse meu parente. “Vai lá falar com ele!”, como se o mero fato de ter “olhos puxados” automaticamente fizesse com que nós pudéssemos nos entender.
Apesar dos meus mais de 30 anos, apenas recentemente comecei a entender o que é ser amarelo no Brasil, em meio a uma cultura que tem uma série de pressupostos sobre os “orientais”. “Como você é calmo”, me dizem. De fato, eu sou uma pessoa que aparenta calma, a questão é que, frequentemente, essa observação vem acompanhada de algum comentário sobre os “orientais”. “Tenho uma amiga que é oriental e ela é igualzinha a você”.
Há uma diversidade enorme dentro dessa categoria que as pessoas costumam chamar de oriental, tanto em termos de aparência física, quanto em termos de personalidades e vivências culturais, mas há uma homogeneização do que significa ser oriental no Ocidente. Isso porque estou me restringindo ao uso do termo oriental para se referir a pessoas amarelas, já que incluir o Oriente Médio traria uma série de outras questões, tanto ou mais problemáticas .
Desde que retomei a vida social após o período de isolamento da pandemia, cada vez mais percebo que minha cor/raça não passa despercebida, o que por si só não é um problema, o problema é ser visto como esse outro genérico, o que às vezes se manifesta em falas muito banais, como a vez que um senhor que atendi na livraria disse que eu “pareço o kung fu”. A rigor, a frase não faz sentido, mas ela reflete uma certa visão. Se ele lembrou de algum ator de kung fu do qual não lembrava o nome, ou se ele nem estava pensando em ninguém em específico mas buscou uma palavra que remetesse a “pessoa oriental”, a visão por trás é essencialmente a mesma: achar que ter os olhos puxados automaticamente me torna parecido com esse ser genérico que as pessoas chamam de “japa”.
Jack não se chamava Jack. Sua passagem pela escola foi muito rápida e não tenho certeza de sequer ter sabido seu nome um dia. As razões para ele não ter ficado me fogem, mas acho razoável supor que ele não se sentiu acolhido, já que foi tratado mais como uma atração do que como um novo colega de turma.
Éramos crianças também, não dá para culpar. Quando escrevo sobre isso, tomo o cuidado de não tornar uma questão de apontar dedos, mas de formular o problema e dizer “existe esse tipo de situação e acho importante olhar para ela”. Essa semana, postei no Instagram sobre uma situação que passei no posto de saúde: uma senhora respondeu “arigatô” ao eu oferecer meu lugar para sentar, mesmo que eu tenha falado em português, sem nenhum sotaque que pudesse sugerir que sou japonês. E aí veio uma série de respostas na minha DM, o que eu acho um retorno legal, mas algumas dessas respostas pareciam tentativas meio forçadas de empatizar, dizendo coisas como “nossa, não faço ideia de como é passar por isso”, e eu não estou pedindo que a pessoa se coloque no meu lugar quando escrevo sobre o que eu passo. Quero dizer, não estou clamando por atitudes individuais, apenas repercutindo algo que eu passo como pessoa amarela, e não deixando que isso passe batido, porque se o problema não for olhado, ele continua ali.
Nessas situações, algumas pessoas dizem que eu não posso deixar ficar assim, que eu deveria responder. Talvez eu deva mesmo, mas mesmo isso não é suficiente. Porque são situações recorrentes, uma situação cultural. Muitas coisas não mudaram desde a minha época de escola. Não faz muito tempo que um presidente do Brasil perguntou para um asiático se era “tudo pequenininho aí”, fazendo um gesto insinuante com a mão. Atores amarelos ainda são preteridos até mesmo quando os personagens têm ascendência asiática. As pequenas discriminações se somam, aumentando nossa sensação de não-pertencimento. Sim, amarelos tem muito em comum, mas esse em comum é imposto a nós pelo olhar colonizador ocidental. Colonizador porque busca ditar qual o nosso lugar no mundo. O oriental, essa identidade genérica e amorfa.
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