Temos livre-arbítrio ou estamos fadados a seguir um destino pré-estabelecido? De uma forma ou de outra, essa é a tônica do Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami, que terminei de ler no mês passado. Uma das características que admiro na obra de Murakami é sua capacidade de transitar pelo limiar do clichê, sem nunca cair nele de fato.
Clichês não são necessariamente temas superficiais, pelo contrário, são temas tão relevantes que se tornam recorrentes na humanidade, a ponto de serem banalizados. O próprio Kafka à beira-mar é uma espécie de releitura de Édipo Rei, peça escrita por Sófocles por volta de 427 a.C., ou seja, o tema do destino está aí há pelo menos 2400 anos. Nem Édipo Rei nem Kafka à Beira-mar responde à questão do destino vs livre-arbítrio, mas o fato de a suscitarem direciona a narrativa de um modo particular.
Os capítulos de Kafka à beira-mar se alternam entre dois enredos, a fuga de casa do menino Kafka, assombrado por uma profecia edipiana, e a trajetória de um senhor chamado Nakata, cujas ações tem repercussões na vida de Kafka. Em dado momento, Nakata conhece um caminhoneiro chamado Hoshino, e juntos eles precisam abrir uma certa passagem que Kafka precisa atravessar.
As instruções para abrir a passagem provém de Nakata, o problema é que aquilo que precisa ser feito surge espontaneamente em sua mente apenas no momento de agir.
— E enquanto não chegar lá, não sabe…
— Isso. Enquanto não chegar lá, Nakata não tem a menor ideia.
— Ah, não tem importância. Se quer saber, eu também não gosto de histórias compridas. O problema todo se resume em encontrar essa tal pedra de entrada, certo?
O que é a tal da entrada e o que uma pedra tem a ver com isso não vem ao caso aqui, a questão é que a dupla tinha que abrir a entrada e, depois de um certo desfecho, fechá-la. Estavam eles destinados a se conhecer e seguir juntos nessa jornada? Hoshino podia simplesmente se recusar? E se ele assim fizesse, a tarefa seria cumprida de toda forma, talvez pelas mãos de outro indivíduo?
Temos escolha, não há dúvidas. Eu, pelo menos, tenho a nítida sensação de que, se eu fiz X ou Y, foi porque decidi, ainda que impulsionado por motivos que eu não saberia apontar claramente.
Penso na noção de carma, não como algo predeterminado e linear, mas da forma como ela é abordada dentro do budismo. Como explica Traleg Kyabgon no livro Carma: o que é, o que não é, e sua importância, a visão budista de carma aponta para a existência de muitas causas e condições para cada situação. Uma semente germina porque existe um embrião lá dentro, que por sua vez se formou graças a um processo de fecundação e por aí vai, mas ela só germina quando encontra as condições ideais para germinar.
Diante dessa complexidade, muitos aspectos do carma estão além do nosso controle. Devido ao carma, surgem momentos em que somos impelidos a tomar um decisão e seguir em determinada direção. Não estou dizendo que existe um único caminho, ou que não somos nós quem decidimos como vamos agir. Acontece que quando chegamos a um certo cenário, com uma certa configuração, é como se setas sutis apontassem para onde temos que ir. Segui-las pode ou não ser uma boa ideia, o que provavelmente só vamos descobrir depois que agimos, movidos por um misto de intuição e discernimento.
Em 2019, me decidi a prestar a Fuvest para ingressar no curso de Letras. Era um plano que eu já vinha considerando há alguns anos, tendo em mente a habilitação em japonês, mas naquele ano a decisão surgiu de modo muito claro para mim.
Eu não sabia o que aconteceria depois que passasse na Fuvest, assim como Hoshino e Nakata não faziam ideia do que se passaria depois que abrissem a tal entrada:
— Se você conseguir abrir essa pedra da entrada, acha possível que haja um estrondo e de repente algo se levante na nossa frente? (…)
— Pode ser que algumas coisas aconteçam, pode ser que não. Nakata não sabe porque nunca fez nada parecido com isso que está fazendo agora. Precisa abrir para saber.
Para mim, também estava claro que, entrando na Letras, podia “haver um estrondo” na minha vida, ou podia não acontecer nada demais.
Diferente de Nakata, eu já tinha feito algo parecido antes, prestando a Fuvest, sendo aprovado etc. Por outro lado, foram situações completamente diferentes. Na primeira, eu estava saindo do Ensino Médio e o que se esperava de mim era mesmo que eu prestasse vestibular e ingressasse numa Universidade, de preferência pública. Eu estava seguindo um script pronto. Dessa vez, foi um movimento que veio de outro lugar. Partiu de mim mesmo, eu poderia dizer, mas não é bem isso. Eu simplesmente sabia que estava na hora de “abrir a pedra da entrada”.
A gente precisa se forçar um pouquinho na vida. Sair da zona de conforto, como dizem (olha o clichezão aí!). Existem duas forças cármicas atuando quando você precisa tomar uma decisão importante, uma delas é a de manter as coisas como estão, ficar com aquilo que é familiar, a outra é o desejo, aquilo que te impele a seguir em determinada direção.
Não é que a gente precise seguir o desejo. O problema é que não seguir também tem implicações, especialmente se deixamos de seguir por medo, preguiça, ou qualquer tipo de emoção paralisante, porque é como se as autorizássemos a dirigir as nossas vidas.
Ano passado, tive que trancar o curso por não estar dando conta da demanda e com questões de saúde a serem investigadas. Pretendo reabri-lo em algum momento, mas, independente disso, o fato de ter entrado criou as causas e condições para uma série de coisas que vieram na sequência.
Para fechar essa edição com chave de ouro, o último e derradeiro clichê: a jornada importa muito mais do que o destino final.
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Um abraço e até a próxima!