Dia desses, o algoritmo do Reels me entregou o vídeo de um trem-bala passando no Japão. Não conheço bem o contexto do vídeo (como acontece com 99% dos vídeos do Instagram), mas há pessoas esperando apenas para registrar esse momento, ficando bastante impressionadas com a cena. É tudo muito rápido: alguém diz que está chegando, BANG, e já foi embora. Você mais ouve o barulho do que vê o trem propriamente dito.
Se o trem-bala ilustra bem aquilo que tem um impacto momentâneo e efêmero, outros fenômenos repercutem de forma muito mais duradoura, como a passagem do mestre zen Shunryu Suzuki, autor do clássico Mente Zen, mente de principiante, pelos Estados Unidos.
Suzuki-roshi nasceu no Japão em 1904. Em 1959, foi convidado para assumir um templo zen budista estabelecido em São Francisco, na Califórnia. Ao descobrir que havia muitas pessoas interessadas nos ensinamentos budistas naquele lugar, decidiu se estabelecer lá, onde permaneceu até o final de sua vida, em 1971. O próprio livro a que me referi nasce desse encontro: como forma de honrar e divulgar os ensinamentos, seus alunos os transcreveram e organizaram na forma de um livro.
Logo na introdução, Richard Baker conta um detalhe da chegada de Suzuki-roshi super inspirador, mas que pode passar batido em uma leitura superficial:
Logo após sua chegada, diversas pessoas se acercaram perguntando-lhe se podiam estudar Zen com ele. Suzuki-roshi disse que praticava zazen toda manhã bem cedo e que podiam reunir-se a ele se quisessem.
Destaquei essa frase porque ilustra perfeitamente o ponto que eu queria levantar. Suzuki-roshi não ia ao templo porque teriam pessoas esperando por ele. Ele ia lá fazer o seu zazen, simples assim. Se alguém quisesse, poderia se juntar a ele. E muitos se juntaram, de fato.
Naturalmente, diante do interesse dos praticantes que decidiram o acompanhar, ele dava ensinamentos também. E sem que ele precisasse sequer sair do lugar, seus ensinamentos percorreram o mundo.
Desenvolver tal nível de confiança naquilo que estamos fazendo fica ainda mais desafiador em uma cultura tão performática quanto a que estamos vivendo com as redes sociais.
Estamos reféns de uma lógica que mede nosso sucesso pelo número de curtidas, comentários, compartilhamentos. E se estamos acostumados a plataformas onde esse tipo de retorno é mais instantâneo, o risco de nos sentirmos ignorados é ainda maior no contexto das newsletters, por exemplo.
Não é incomum você receber um like quase instantâneo quando posta uma foto no Instagram, mas a história muda completamente quando você envia uma newsletter. Começando pelo fato de que, em geral, o acesso ao seu texto é pelo e-mail; até onde sei, só o Substack tem esse negócio de curtir e comentar, e para chegar lá, a pessoa precisa abrir o texto no navegador ou aplicativo, ter cadastro na plataforma etc. Muita complicação para quem só está afim de ler um texto legal.
Além disso, se você escreve uma edição estimada em 5 minutos de leitura, é pouco provável que a pessoa tenha essa disponibilidade assim que recebe o e-mail, por mais que você otimize o dia e horário de envio. Algumas vão ler no final do dia, outras no final da semana, outras vão lembrar de ler muito tempo depois. Outras, ainda, deixarão seu e-mail para sempre esquecido em sua caixa de entrada (e tá tudo bem).
A lógica da gratificação instantânea pode parecer mais tentadora, mas lembra do trem-bala? É esse tipo de impacto que estamos buscando, tão efêmero que mal dá tempo da pessoa processar o que viu?
Afinal, qual a sua motivação em fazer o que faz? Mesmo que seja um trabalho remunerado, no fundo, não é só pelo dinheiro, certo?
A chave aqui é avaliar o quanto você busca um benefício estritamente pessoal, seja fama, reconhecimento, afeto, ou o que for. Não tem problema querer tais coisas, o problema é tomá-las como seu principal referencial.
Ao invés disso, por que não buscar um propósito mais amplo, onde o retorno não está no nível de sucesso pessoal, mas no próprio fato de estar participando de algo significativo?
Escrever, por exemplo, é extremamente significativo, porque as pessoas amam ler. Só que elas não querem ler o que VOCÊ escreveu, necessariamente. Por n motivos, as pessoas podem se interessar ou não pelo seu texto.
Isso se aplica a qualquer coisa que você faça.
O segredo está em conciliar dois pontos de vista: você não é importante, ao mesmo tempo, você tem um papel no lugar onde está. Assim, você não fica tão refém das gratificações, porque não acha que fez nada especial, para começo de conversa, mas você não deixa de fazer, porque entende a relevância daquilo que está fazendo.
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Links dessa edição
“Escrever é um processo de criar e de refazer sentidos”. Surina Mariana conta por que escreve.
Aline Valek fala sobre duas irmãs muito sedutoras, cada uma a sua maneira.
“Orbe: sobre os movimentos da Terra” é um anime que trabalha bem essa linha tênue entre nossa desimportância e a diferença que podemos fazer no curso da história. Assisti na Netflix, mas aqui tem uma playlist completa com os episódios legendados em inglês. Contém cenas fortes, mas também tem cenas muito bonitas.
Até a próxima!
Gostei bastante desse ponto de vista conciliatório