O lugar onde não há escuridão
Better Call Saul é um spin-off da série Breaking Bad, focado na história de Saul Goodman, o “criminal lawyer” envolvido com o tráfico de metanfetamina. Ao longo de Better Call Saul, cuja linha do tempo principal se passa num período anterior ao de Breaking Bad, somos apresentados a breves cenas de um futuro em que Saul Goodman assume uma nova identidade para não ser encontrado pela polícia.
Gene, como passa a se chamar, trabalha em uma loja Cinnabon dentro de um shopping center, longe de Albuquerque, onde fez sua fama. Uma escolha estratégica: ele precisa de um emprego que passe a imagem de que é uma pessoa comum bancando o próprio sustento com o suor do seu trabalho, e não alguém que carrega uma fortuna adquirida às custas de vidas destruídas pela droga. E precisa ser um cargo discreto. Ele não virou, sei lá, o dono de uma startup de sucesso ou um coach influencer com milhões de seguidores (ainda que seja bem mais a vibe dele).
No romance distópico 1984, escrito por George Orwell, o protagonista Winston Smith é um subversivo. O’Brien, um agente da Polícia das Ideias, se aproxima de Smith fingindo ser um aliado, numa emboscada para fazê-lo revelar seus pensamentos contra o regime autoritário, para então prendê-lo em flagrante.
Pouco antes de revelar sua verdadeira identidade, O’Brien diz para Smith, em tom enigmático, que o encontraria no “lugar onde não há escuridão”. Já na prisão, Smith se dá conta que O’Brien se referia àquele lugar, onde não há janelas e a luz fica acesa 24 horas por dia. Smith perde completamente qualquer noção da passagem do tempo. “Não há diferença entre o dia e a noite neste lugar. Não sei como fazer para calcular o tempo.”
Passados alguns dias, Smith já não sabia se era meio-dia ou se era meia-noite, ou qualquer das 24 horas do dia.
Naturalmente, quando peguei 1984 para ler, eu saquei que O’Brien se referia a alguma espécie de prisão, mas quando li “o lugar onde não há escuridão” eu pensei nos shoppings. Muita luz artificial, pouca entrada para luz natural. Onde trabalho até que tem bastante claraboia, mas os vidros são escurecidos, e predomina ainda a luz artificial, intensa e constantemente acesa. No corredor para o banheiro do andar onde fica a livraria, tem um painel gigante de LED na parede, uma luz ofuscante da qual não dá para fugir.
Isso tem um efeito também em perdermos a noção do tempo, o que tem um propósito muito claro: que os clientes passem mais tempo lá dentro, consumindo mais. E não, não vou levantar a bandeira anticapitalista nesta edição. Meu maior incômodo é a iluminação (eu provavelmente, ia ficar igualmente incomodado passando a noite no centro de Tóquio). Acho um exagero. Para a gente ficar meio desnorteado lá dentro já bastariam os corredores indistintos e escadas rolantes distribuídas de forma estranha.
Em 2015, eu fui morar sozinho. Era a primeira vez que eu escolhia um quarto para alugar. Até então, a única vez em que saí da casa da minha mãe foi para morar na república de um amigo que abriu uma vaga e eu simplesmente fui. Não que eu tivesse me certificado antes de que era um bom lugar para morar, mas por sorte era.
Não recomendo para ninguém, porém, um lugar como aquele onde fui morar em 2015. Hoje, é bastante óbvio para mim que janelas sejam imprescindíveis em um ambiente doméstico. Na época, eu não dei muita bola.
Com o tempo, fui ficando meio claustrofóbico lá dentro. Para além da desconexão com o ambiente externo, havia a sensação de isolamento. Dois rapazes alugavam os outros quartos, mas nós três passávamos a maior parte do tempo ou fora de casa, ou fechados cada um em seu quarto. Praticamente só conversávamos para ajustar questões mais pragmáticas como dividir a tarefa da faxina e combinar os dias que cada um usaria a máquina de lavar roupa.
Enfim, o quarto não tinha janelas. O andar térreo inteiro da casa não tinha janela, a única janela que tinha era coberta por um daqueles cortinões beges que não deixam a luz passar. Ali, me sentia mesmo um pouco como Smith, talvez por isso não conseguia passar muito tempo lá dentro (a não ser na hora de dormir, no completo breu).
Esperei passar os seis meses que era o tempo mínimo combinado com o dono para eu ficar lá, até porque a casa da minha mãe estava em reforma e não rolava voltar para lá. Passado esse tempo, conversei com o dono e expliquei minhas razões para não querer continuar. “Só por que não tem janela?”, ele respondeu. Ele morava no andar de cima, e tenho quase certeza de que lá havia uma janela.
Uns meses depois dei uma fuçada nos anúncios de quarto na internet e lá estava o bendito. Não sei se alguém entrou depois de mim, se entrou, não ficou muito tempo. Espero que o dono tenha se tocado, a essa altura, de que não é razoável alugar quartos sem janelas. Não é um lugar onde alguém consiga se sentir bem.
Acho que foi a Eliane Brum que uma vez comentou sobre os povos originários ficarem intrigados com a gente precisar erguer tanta parede.
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