Quando eu era mais novo, o Natal sempre me deixava comovido. Enfeites por toda a cidade, programação especial de Natal na TV aberta e, claro, a celebração do nascimento de Jesus. Tudo isso tinha um valor significativo para mim, até eu começar a estudar biologia, quando passei a acreditar que tudo o que chamamos de vida fosse resultado de interações moleculares complexas, inclusive nossos pensamentos e ações. Dentro dessa visão, não cabia mais nada que soasse minimamente espiritual.
Depois de um tempo, fiz as pazes com a espiritualidade, quando entendi que ela não precisava estar vinculada à crença ingênua em algo sobrenatural, mas vir da constatação de que a realidade da vida não se encaixa em uma visão cartesiana. Bell hooks, em tudo sobre o amor explica essa visão da seguinte forma:
Quando falo do espiritual, me refiro ao reconhecimento dentro de cada um de que existe um lugar de mistério na nossa vida onde forças que estão além do desejo ou da vontade humana alteram as circunstâncias e/ou nos guiam e nos direcionam. Chamo essas forças de “espírito divino”.
O tal “espírito natalino” me parece uma dessas forças. Só que ele não surge sozinho, mas a partir de relações que nos toquem, como ilustra, por exemplo, a história do Grinch, cujo coração atrofia após anos de isolamento, mas volta a se fortalecer e se aquecer quando é tocado pelo afeto e carisma da menina Cindy Lou.
Cindy Lou, por sua vez, se dá conta que por trás do malvado Grinch tem alguém que só queria ser feliz, mas se frustrou com as atitudes de outras pessoas durante o Natal, assim como ela. Para mim, o espírito natalino tem a ver com esse se dar conta de que somos iguais. Uns mais confusos que outros, mas todos só estão seguindo aquilo que lhes parece o melhor a fazer.
Falando em filmes antigos, esse ano eu assisti pela primeira vez o clássico japonês Merry Christmas, Mr. Lawrence. Apesar do nome, é um filme de guerra, não de Natal. A guerra, porém, é só o pano de fundo, e a beleza do filme está em retratar a humanidade latente por trás de homens desumanizados pela guerra.
Alerto que não estou te sugerindo um filme para assistir no Natal (a não ser que nunca tenha visto Grinch, vai ver Grinch agora!). Sendo um filme de guerra, Merry Christmas, Mr. Lawrence é permeado de cenas bem perturbadoras. Minha proposta é te poupar de vê-las e pular direto para a mensagem natalina. Se você, ainda assim, pretende assistir o filme e não quer spoilers, leia esse texto em outro momento.
Caso goste de uma música de fundo para a sua leitura, dá o play na excelente performance de Merry Christmas, Mr Lawrence, tema principal do filme, composta e executada por Ryuichi Sakamoto, falecido em março deste ano.
Papai Noel por uma noite
John Lawrence (Tom Conti) é o único prisioneiro de guerra fluente em japonês na ilha de Java, ocupada pelo Japão durante a Segunda Guerra, o que o torna um importante porta-voz entre oficiais japoneses e demais prisioneiros. Sargento Hara (Takeshi Kitano), responsável pela guarda dos prisioneiros, mantém uma postura autoritária em relação a Lawrence, uma vez que ele está do lado inimigo, mas nota-se que, ao mesmo tempo, ele cultiva um certo apreço pelo prisioneiro.
Após um incidente envolvendo um prisioneiro chamado Jack Celliers (David Bowie), os soldados japoneses realizam uma inspeção geral no abrigo dos prisioneiros, durante a qual encontram um rádio contrabandeado. Celliers e Lawrence são responsabilizados e condenados à execução, ainda que não haja a menor evidência de seu envolvimento.
Posteriormente, um outro prisioneiro confessa o contrabando do rádio, e sem terem conhecimento do fato ainda, Celliers e Lawrence são surpreendidos por um chamado do sargento Hara, que os aguarda na sala do general. Chegando lá, se deparam com Hara em um estado bem diferente do usual, dando risada e falando de um tal de “Father Christmas”, se referindo ao Papai Noel. Na mesa, tomates e uma garrafa de saquê quase vazia.
Lawrence-san, Father Christmas gozonjika? (Mr. Lawrence, conhece Papai Noel?), pergunta Hara, rindo. Kon’ya, watashi Father Christmas! (essa noite, eu sou o Papai Noel!).
What’s he saying? (o que ele está falando?), pergunta Celliers a Lawrence.
He thinks he’s Santa Claus. (ele acha que é o Papai Noel)1
Hara libera Celliers e Lawrence da pena, antes mesmo de consultar o responsável pela sentença, o capitão Yonoi. A cena é linda porque quebra com a tensão que permeia o filme. Naquele momento, Hara e Lawrence não são mais algoz e vítima. O antagonismo entre lados opostos de uma guerra é suspenso por alguns instantes.
Merry Christmas, Mr. Lawrence!
Pulemos para a cena final. O Japão perdeu a guerra, e Lawrence visita Hara em sua cela um dia antes de sua execução. Hara aprendeu um pouco de inglês e junto com Lawrence estabelece o diálogo mais tocante de todo o filme2:
If it was up to me, I’d release you today and send you back to your familiy (se dependesse de mim, eu te soltaria hoje e te mandava de volta para sua família), diz Lawrence.
I am ready to die. But I don’t understand. My crimes were no different from any others soldiers. (Eu estou pronto para morrer. Mas eu não entendo. Meus crimes não foram diferentes de qualquer outro soldado), desabafa Hara.
You’re the victim of men who think that they’re right, just as, one day, you and captain Yonoi believed absolutely that you were right. The truth is, of course, that nobody is right. (Você é vítima de homens que acham que estão certos, da mesma forma que, um dia, você e o capitão Yonoi acreditaram que estavam absolutamente certos. A verdade é, claro, que ninguém está certo).
Capitão Yonoi, que aliás foi interpretado por Ryuichi Sakamoto, era o comandante no campo de prisioneiros da ilha de Java. Suas ações se respaldavam na suposta honra da nação japonesa, levada ao extremo durante a Segunda Guerra.
Mais adiante, Hara se volta para Lawrence e relembra aquele Natal. - It was a good Christmas, wasn’t it? (Foi um bom Natal, não foi?). - É como se Hara evocasse a relação a partir daquela conexão positiva. Ele poderia, ao invés disso, ter pedido perdão pelos abusos ou algo do tipo, mas naquele momento, é como se sequer houvesse o que ser perdoado. Quem falava ali não era o opressor para o oprimido, mas duas pessoas iguais, que testemunharam a brutalidade de uma guerra.
Não sobra muito a dizer, e Lawrence vai se preparando para deixar o amigo.
Goodbye, Hara-san. - Com uma reverência, Lawrence se despede. - God bless you.
No momento em que Lawrence se encaminha para a saída, Hara chama seu nome uma última vez. A câmera dá um close no rosto sorridente de Hara. De modo alegre e afetuoso, Hara declama:
Merry Christmas! Merry Christmas, Mr. Lawrence!
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Feliz Natal e até ano que vem! <3
Dalmo, que coincidência prazerosa! Uma amiga me falou desse filme por conta de um outro, em cartaz no cinema chamado Monsters (Kaibutsu). O mesmo Ryuichi Sakamoto faz a trilha sonora. Muito bom! ❤️