É verdade o que eu escrevi?
No que você está pensando?, perguntava recorrentemente uma ex-namorada. Desconfio que o estava em jogo não era o que eu estava pensando, efetivamente, ela só estava me achando estranho, distante talvez. Seja como for, eu tentava resgatar o que eu estava pensando, mas tudo que eu encontrava era uma sequência de pensamentos desconexos.
No que estou pensando? Peraí, deixa eu ver…
Você não sabe no que está pensando?
Saber eu até sabia, é que as palavras simplesmente não saíam.
Comunicar-se não é tarefa trivial. Além dos nossos pensamentos não serem necessariamente coerentes, às vezes eles só fazem sentido na nossa cabeça, porque cada um deles surge de um certo conjunto de referenciais. Então, se quiser explicar, a gente precisa apresentar todo um contexto em que eles fazem sentido. Ajuda se a pessoa tiver um conjunto de referenciais compatíveis, mas nem sempre podemos contar com isso.
De todo modo, por mais controle que tenhamos sobre como queremos nos expressar, não temos o menor controle sobre a interpretação que o interlocutor fará do que dissermos. Me dar conta disso aliviou em grande medida minha dificuldade com as palavras. Hoje em dia, já não me esforço tanto para ser compreendido, contanto que eu consiga manter um diálogo. Claro que se eu disser direita e a pessoa entender esquerda, pode ser um problema, então não é que a compreensão não importe. A questão é não me paralisar por não conseguir me expressar perfeitamente.
Na escrita, tenho me importado ainda menos com a objetividade. Afinal, eu não escrevo para transmitir um conteúdo, de conteúdo a internet já está cheia. Escrevo para me comunicar e, ouso dizer, colocar um pouco de mim mesmo no mundo.
Escrever com o corpo
Às vezes, dou uma emperrada na escrita. Se alguém me flagrar nessas horas, é provável que eu esteja todo torto na cadeira, olhando para a tela com uma cara de zumbi. Eu tenho essa tendência a achar que escrever é uma atividade intelectual, como se ela fosse desconectada do corpo. Aí meu corpo vai ficando todo travado, e me pergunto porque as ideias não fluem direito.
Uma das estratégias que adquiri recentemente quando começo a travar na escrita, preso em uma mesma frase ou buscando obcessivamente uma palavra que corresponda àquilo que quero expressar, é levantar e ir me mexer um pouco. Faço um alongamento, uma flexão, qualquer coisa que me coloque em movimento. Ainda estou avaliando o quanto isso funciona; na pior das hipóteses, continuo sem ideias, mas pelo menos me sinto bem fisicamente.
Em busca da ficção
Admiro enormemente quem escreve ficção. Não acredito o suficiente na minha criatividade para criar todo uma narrativa que não seja a minha própria. Porém, sei que estou errado e que, na verdade, minha escrita não difere tanto da ficção. Quando escrevo sobre o que já vi ou vivi, estou criando uma história nova. Estou usando minhas lembranças como base, mas a história já é outra quando conto. Isso não quer dizer que eu esteja inventando, mas é que a memória em si já é um processo de recriação. Quando você lembra de algo, não é como se as informações estivessem armazenadas em um HD dentro do seu cérebro e ele simplesmente as reproduzisse. As memórias chegam filtradas pelo momento presente.
Ainda assim, escrever ficção de fato está em outro patamar. Para começo de conversa, você precisa ter um repertório muito maior de vivências do que a sua. Você não precisa as ter vivido, mas minimamente conhecê-las e entendê-las. Por exemplo, se eu fosse escrever ficção, provavelmente teria maior facilidade em criar um personagem amarelo do sexo masculino, mas não é impossível que eu crie personagens pertencentes a outros grupos étnicos ou gêneros, se eu entender em alguma medida a experiência desse(a) outro(a). Não acho que isso mude muito caso eu crie universos mais fictícios, onde haja vida extraterrestre, por exemplo. Obras como Star Wars só expandem a possibilidade de existência para outras regiões do universo, mas o que os personagens passam não fogem muito daquilo que conhecemos na nossa experiência terrestre.
Tendo a me preocupar excessivamente com a verossimilhança do que escrevo. Sinto que minha escrita carece de ficção. Talvez eu esteja em um momento em que essa questão ganha maior relevância, influenciado pela leitura de Kafka à beira-mar, do Murakami, que terminei essa semana. Um senhor chamado Nakata conversa com gatos e, em dado momento, faz chover peixes, por que não? E que tal essa chuva de peixes ocorrer no bairro onde um homem sinistro que se vestia e se apresentava como Johnnie Walker acaba de morrer?
Não é que eu queira inventar nada, mas se a memória é uma recriação, que eu me permita moldá-la e torná-la mais interessante. Que eu não me feche em narrativas estreitas por dar solidez a um único ponto de vista. Que eu não enrijeça meu corpo e minha mente, mas que minhas ideias possam fluir como as circunstâncias da vida.
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