Eu estava na quinta ou sexta série quando Jack, filho de chineses residindo a pouco tempo no Brasil, apareceu na minha escola.
Naturalmente, a sua presença chamou a atenção das crianças; era um aluno novo e, ainda por cima, estrangeiro. No dia seguinte, já não o vimos mais, tamanho deve ter sido seu sufoco em meio a tantas crianças tentando falar com ele em uma língua que ainda não dominava. Não posso garantir que esse tenha sido o real motivo, mas é o mais plausível que consigo imaginar.
Seja como for, além da inaptidão da escola em receber Jack naquele dia, ficou marcado em minha memória o fato de alguns colegas ficarem agitando para que eu tentasse conversar com Jack. Achavam que tínhamos a mesma origem, sei lá eu. Acontece que, em primeiro lugar, eu nasci no Brasil, em segundo lugar, minha ascendência é japonesa, e não chinesa.
O passado se funde no presente
O trabalho de livreiro reavivou essa memória em mim. Interagir com clientes está entre minhas principais tarefas, e não é raro que alguns comecem a falar sobre japoneses e seus supostos costumes. São comentários inocentes, a princípio, mas nas entrelinhas, é como se dissessem: “lá de onde você veio, as pessoas são assim”.
Às vezes, os próprios nikkei (descendentes de japoneses) reproduzem estereótipos ligados à nossa etnia. Certa vez, lembro de uma cliente me “elogiar” dizendo algo como “só podia ser nihonjin (japonês, literalmente)”. Eu estava fazendo um embrulho de presente, empenhado em dobrar certinho, e ela se referia a esse tipo de atenção aos detalhes. Diga-se de passagem, eu me empenho justamente por ser desajeitado, então preciso dedicar um esforço extra para chegar em um resultado minimamente aceitável.
Oriental
A frase mais curiosa que já ouvi de um cliente, dessa vez branco, foi: “você parece um kung fu”. Talvez eu não tenha ouvido direito, talvez ele tenha dito “você parece lutador de kung fu”. De todo modo, isso resolve a ausência de nexo na frase, mas não ameniza a violência que é estereotipar alguém dessa forma, me associando a esse lugar se convencionou chamar genericamente de “Oriente”.
Esse tipo de ocorrência não se restringe a situações de atendimento ao público. Quase todo nipo-brasileiro, e até mesmo asiáticos de outras etnias, já ouviu um arigatô em agradecimento a algo. Não digo em um contexto familiar ou entre nipo-brasileiros que tem esse hábito de incorporar palavras japonesas em seu vocabulário cotidiano, mas quando claramente a pessoa só usou o arigatô por estar diante de uma pessoa com fenótipo asiático.
Nikkei sim, brasileiro também
Ser descendente de japoneses faz parte do que eu sou. Quando enfatizo que sou brasileiro, não estou negando minha origem, pelo contrário. Ser um descendente de japoneses nascido no Brasil me dá direto a me declarar brasileiro tanto quanto nikkei.
O entendimento da identidade amarela é ainda uma novidade na conversa pública e muitos amarelos ainda não sabem se definir. Muitos se entendem como brancos, porque acham que é uma questão de cor da pele, ou pardos se a pele tiver uma tonalidade mais escura. Eu mesmo só passei a me autodeclarar amarelo de uns anos para cá.
E isso tem uma série de desdobramentos. Quando amarelos caem na ilusão de que são brancos, acabam não percebendo quando são vítimas de discriminação. Quando alguém fica repetindo para a gente abrir o olho ou faz insinuações sobre o tamanho das nossas partes íntimas, são só piadas de tiozão; quando nos chamam de japa ou japonês, é só um apelido como qualquer outro; quando dizem para matar um japonês se quiser passar no vestibular, é só um jeito meio estranho de nos chamar de inteligentes.
Desde que passei a me autodeclarar amarelo, não só nos formulários, mas usando a denominação quando falo de raça, compreendi muita coisa que antes eu não me dava conta.
Foi por isso que decidi revisitar e reescrever esse texto. O que me inspirou a escrevê-lo em abril de 2023 foi uma série de pequenas discriminações que sofri na época, entre elas, a fala “você parece um kung fu”. Dessa vez, além de passar rápido por esses episódios, diminuindo a sua importância, eu gostaria de acrescentar um tom mais afirmativo ao texto. Dizer com todas as letras que sou amarelo e que eu não caibo nos rótulos que tentam nos impor tem sido libertador.
Aliados na luta antirracista
Gostaria ainda de acrescentar que a discussão sobre o estigma enfrentado por pessoas asiáticas no Brasil não busca se sobrepor a outras lutas antirracistas, mas sim, ampliar e enriquecer o diálogo sobre raça e identidade em nosso país. Se nós, amarelos, ainda estamos engatinhando nessa conversa, temos que reconhecer que pretos e indígenas já abriram esse caminho muito antes de nós, mesmo em meio a opressões sofridas em escalas muito maiores.
Made in Japan tchu tchuru tchuru…
Enquanto eu lapidava esse texto, uma música que tocava nas rádios quando eu era criança começou a soar na minha memória... Foi aumentando o volume até fazer sentido com o que eu estou escrevendo. A música Made in Japan, do Pato Fu, faz referência à tecnologia japonesa superando a americana, como uma espécie de vingança sem armas às bombas atômicas lançadas no Japão.
Quando ouço o refrão da música, porém, só consigo pensar na minha origem e de tantos outros descendentes de japoneses no Brasil, como a própria vocalista do Pato Fu, Fernanda Takai. Nasci com os meus dois pés no Brasil, mas em alguma parte do meu ser eu me sinto made in Japan, o que faz o refrão soar quase como um hino para mim.
É nosso direito estabelecer conexões com nossa ancestralidade, sem que isso nos imponha rótulos limitantes. Podemos conversar sobre a cultura, a arte, a língua japonesa, e se você estuda japonês, pode até me propor de treinarmos nosso japonês juntos. Tudo isso passa a ser válido no momento em que você me conhece e sabe que esses são interesses que tenho. No mais, eu não me importo em me encaixar nesse ou naquele estereótipo, tudo que desejo é ser visto na minha individualidade.
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Quando reflimos no fato das pessoas que fazem esses comentários sem noção são eles que estão com olhos fechados para conhecer novas culturas e conhecimentos, infelizmente preferem resumir tuda cultura nipo-brasileira em Japa. Muito bom esse texto um selo top 👌 para ti
Adorei sua revisita ao texto. Traz pontos muito importantes e delicados. Cresci não entendendo (não sabendo e repetindo merdas) porque realmente a relação com os povos amareloa e seus descendentes é muito invisibilizada no BR. Edição pra salvar e espalhar.