A série ainda nem tinha sido lançada e eu já tinha sido fisgado pelo trailer, no final do ano passado. Dirigida por Hirokazu Kore-eda (que se destacou por filmes como Monster e Assunto de família), Asura é uma adaptação de Ashura no gotoku, obra de 1979 escrita por Kuniko Mukōda. Depois de assistir, posso dizer que minhas expectativas foram atendidas, ainda que fossem bem altas.
(Se você pretende assistir e se incomoda com spoilers, deixe para ler o texto depois, mas se quiser ler antes, tomarei cuidado para não revelar nada sensível.)
Quando se trata de irmãos, acredito que a maioria das pessoas tenha uma experiência mais ou menos parecida quando chega à idade adulta. Alguns ainda mantém um contato próximo, outros nem tanto, mas, inevitavelmente, cada um precisa seguir seu próprio caminho.
Ao longo dos 7 episódios, acompanhamos a vida das irmãs Takezawa e a dinâmica da relação entre elas. O ponto de partida da série é a descoberta de que seu pai tem uma amante e, possivelmente, um filho pequeno. Afastadas, a princípio, elas acabam unidas pela revelação perturbadora.
Ainda que tenham personalidades muito distintas, as quatro se encontram implicadas em uma mesma questão familiar, queiram ou não.
Deixo aqui o nome das irmãs e a ordem de idade delas, volte para cá caso se perca no texto (1 é a mais velha e 4 é a mais nova):
Tsunako
Makiko
Takiko
Sakiko
Mais que irmãs, sisters
Irmãos vivem muita coisa juntos, de forma que não só são afetados por coisas em comum, como afetam uns aos outros, direta ou indiretamente. Vamos a alguns exemplos da série.
Há uma cena em que elas estão reunidas na casa da mãe, que mostra uma caixa de lembranças antigas. Entre os objetos, elas encontram dois amuletos, um para Tsunako e outro para Makiko. A mãe explica que eles eram usados para a primeira visita da criança ao templo. Naturalmente, as irmãs mais novas se dão conta de que não havia um amuleto para elas, ao que a mãe responde que eles foram reaproveitados, e justifica pelo fato da situação ter ficado mais difícil após a guerra.
Porém, esse detalhe se soma a outros para deixar a impressão de que Sakiko está meio que sobrando na família. Para completar, estamos falando de uma cultura onde se preza pela vinda de um filho homem, o que nos faz pensar no fato dela ser a quarta e última filha.
Takiko é uma mulher solteira e atingiu uma idade em que isso começa a pegar mal aos olhos da sociedade. Ela não parece estar muito preocupada com isso, mas as duas irmãs mais velhas ficam em cima dela em relação a essa questão.
Por fim, tem o elemento que afeta todas elas e que também gera divergências: a vida paralela do pai e o tema da traição.
Sakiko, mais flexível em relação à traição, condena Takiko por expor a vida extraconjugal do pai, e provoca dizendo que foi a insatisfação com a própria vida amorosa que a levou a fazer isso.
Makiko, que repudia o ato da traição, parece ser a filha que mais toma as dores da mãe. De outro lado, Tsunako não encontra-se em posição de julgar o relacionamento paralelo do pai, uma vez que ela mesma está enroscada com seu patrão casado. Makiko, evidentemente, tenta persuadir Tsunako a sair dessa. Um diálogo marcante entre as duas acontece quando Makiko pergunta a Tsunako se ela não se envergonha de sua atitude, ao que ela responde assertivamente que não.
Assim, a situação toda vai levantando regiões de conflito entre as irmãs. Como pontua uma resenha em The Hindu, a família Takezawa se soma à lista de famílias nada perfeitas na obra de Kore-eda.
Asuras além do gênero
Em uma conversa com outro homem da família, Takao, marido de Makiko, diz que “mulheres são Asuras”, como quem avisa para ter cuidado. Nas palavras dele, Asuras são deuses do panteão hinduísta, os quais professam a virtude, mas gostam de falar mal dos outros.
Dentro do budismo, Asuras estão na categoria de semideuses, representando os estados mentais estreitos da inveja e competitividade. É um tanto incomum associá-los às mulheres: na minha cabeça, a imagem que funciona melhor para entender a mente dos Asuras são figuras masculinas lutando por status e poder.

Tendo em vista o nome da série e toda essa perspectiva sobre os Asuras, pode parecer que ela própria promove uma visão negativa das mulheres.
O que a série efetivamente mostra, porém, são mulheres questionadoras. Em dado momento, uma carta do leitor anônima no jornal chama a atenção das irmãs: “para mulheres como nós, viver sem criar ondas é realmente ser feliz?”. Esse questionamento vira o pano de fundo de cada uma das irmãs em seus próprios relacionamentos. Elas não deixam os homens fazerem o que bem entenderem, ainda que exista uma expectativa cultural de que mulheres sejam resignadas.
Deixando o aspecto mais neurótico de lado, Asuras tem uma qualidade admirável de não se conformarem. Dizem que os deuses têm seus desejos atendidos por uma árvore cujas raízes se firmam no reino dos Asuras, que ficam putos com isso e tentam atacá-los. O problema dos Asuras não está na indignação, mas em perderem tempo em ataques ineficientes, além da motivação inadequada, que não é de derrubar os privilégios, mas tomá-los para si. Os deuses também estão errados em desfrutar dos privilégios sem olhar de onde eles estão vindo.
Cutucando privilégios
Ainda que por mera coincidência, esse texto está saindo poucas horas antes do Dia da Mulher.
Até para deixar a série menos suspeita, cabe lembrar que a criadora original foi uma mulher.
A versão de Kore-eda certamente também se enriqueceu com os avanços posteriores à época retratada no entendimento sobre expectativas de gênero.
Ao questionarem o pai e seus respectivos companheiros, as 4 irmãs não estão sendo maldosas ou neuróticas, mas apenas chamando a atenção para a forma desigual como homens e mulheres são julgados por atos equivalentes. Aos homens é permitido terem segredos, enquanto as mulheres são incentivadas a manter as aparências e não fazer caso, papel que elas, dignamente, se recusam a aceitar.
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Links desta edição
Trailer da série Asura (em japonês e legendado em inglês), caso o link no texto tenha passado batido.
Entenda quem são, ou melhor, qual a posição da mente correspondente aos Asuras neste artigo na Rigpa Wiki (em inglês).
Resenha por Pallavi Keswani na The Hindu sobre a série (em inglês).
+ Kotoba
O Ano da Serpente de Madeira se iniciou no dia 29 de janeiro no calendário chinês, e 28 de fevereiro no calendário tibetano, simbolizando renovação, crescimento e sabedoria. Leia a edição que escrevi celebrando a chegada do novo ano:
Feliz Ano da Serpente de Madeira
Segundo a Wikipedia em inglês, na simbologia chinesa, a serpente é considerada inteligente, com uma tendência à falta de escrúpulos (a caracterização não favorece, mas convenhamos que é melhor do que escrupulosa, com uma tendência à falta de inteligência
Até a próxima!
Personagens complexas, que não ficam nos extremos caricatos, me conquistam! Tou curiosa com a série por causa da tua resenha. :)