A mera menção ao nome daquele grupo desperta lembranças em minha mente, em um misto de alívio e perplexidade. Eu nem tocaria mais nesse assunto, não fosse o fato deles ainda estarem operando e dando brecha para críticas.
Não é a primeira vez que estarei contando a história abaixo. Em 2022, quando a Justiça de São Paulo determinou que todas as crianças em regime de internato nos colégios administrados pelos Arautos do Evangelho retornassem para suas famílias, vi a notícia pelo G1 e fiquei curioso em saber o que eles andavam aprontando. Em minha pesquisa, descobri que eles eram alvo de graves denúncias de violações contra os direitos das crianças (as referências estarão ao final do texto).
Eu devia ter uns 11 anos quando comecei a frequentar atividades promovidas pelo grupo aos sábados. Não sofri abusos, pelo contrário, tenho lembranças muito caras dessa época, então essa notícia me toca de um modo bastante particular, e, como sempre, a forma que encontrei de processar tudo isso foi escrevendo. Quando escrevi o primeiro texto, minha newsletter ainda estava hospedada na Tinyletter. Como a plataforma encerrou suas atividades, esse texto não está mais disponível publicamente (embora eu tenha encontrado uma cópia dele nos meus arquivos de e-mail).
O gatilho da vez
Há pouco mais de 2 semanas, a morte do Papa Francisco rendeu diversas homenagens ao redor do mundo, mesmo entre não católicos. Enquanto isso, segundo levantamento do Intercept Brasil, alguns grupos declaradamente católicos escolheram não se pronunciar sobre a sua morte.
Entre os nomes da lista, os Arautos do Evangelho.
A lembrança
Não vou me alongar nos detalhes: basicamente, esse grupo se apresentava em escolas públicas com uma proposta de promover valores tradicionais a partir de atividades como música, teatro e karatê.
Me interessei e comecei a frequentar as aulas de karatê aos sábados. As aulas ocorriam em um ambiente essencialmente católico, não apenas pela estética do lugar, mas pelo comportamento que éramos levados a adotar, como reverenciar a imagem de Nossa Senhora ao alto quando cruzávamos o pátio das aulas. A programação do dia seguia depois do karatê. Tomávamos banho, lanchávamos e ouvíamos um instrutor ou veterano contar histórias bíblicas, ou sobre algum santo. Só então, voltávamos para casa.
Eu me sentia bem lá, não vou mentir. Eu não era católico, mas não tinha nenhuma objeção à religião, então não me importava de participar da coisa toda, mesmo que, a princípio, eu só quisesse aprender karatê.
Além disso, éramos muito bem acolhidos. Evidentemente, eles tratavam familiares de forma super cordial também, afinal, precisavam do consentimento dos responsáveis para que participássemos de tudo.
Um dos eventos mais marcantes em minha memória foi uma viagem para a Serra da Cantareira, onde ficamos em uma propriedade que eles possuíam. Jogamos beisebol, assistimos a apresentações teatrais e musicais, e comemos muito bem, com direito a um rodízio de pizza certa noite, assada no forno a lenha, tudo com muito requinte. Também ouvimos muitas histórias ligadas à Igreja, e me lembro particularmente de histórias envolvendo mártires, pessoas que foram perseguidas e morreram em nome do catolicismo.

Diferente de muita gente, eu nunca fui batizado. Isso não os indignava, talvez até os instigasse. Se eu pedisse para ser batizado, seria um grande trunfo para eles, muito mais do que receber alguém que já era batizado. Uma conversão por influência direta deles. E eu bem que cogitei seriamente aceitar o batismo.
Não que eu estivesse pensando em me converter. Eu só queria ser aceito. Lembro de me deparar com uma encruzilhada, na qual ou eu dizia logo sim, era batizado e mergulhava de cabeça naquilo, ou saía de vez e fingia que nunca tinha pisado naquele lugar. Por sorte, eu e minha mãe frequentávamos um centro espírita na época, e não era possível, ou melhor, eles não aceitariam que eu tentasse conciliar os dois caminhos, de modo que escolhi seguir no espiritismo, que fazia muito mais sentido para mim.
Do que eu escapei
Como mencionei no início do texto, existem acusações graves contra os Arautos do Evangelho. Elas incluem o afastamento dos jovens de suas famílias, lavagem cerebral, além de abusos físicos e psicológicos. O próprio Vaticano tomou medidas para conter atividades suspeitas, nomeando um cardeal para ficar na cola do grupo. Na prática, não sei o quanto a intervenção foi efetiva, mas ela certamente abalou a credibilidade do grupo diante da opinião pública, mesmo entre católicos.
Fico tentando imaginar o que aconteceria comigo se eu tivesse seguido por lá. Acho que pior do que me tornar vítima seria eu me aliar à seita. Deus me livre. Me dói pensar nos professores e veteranos que tive lá, pessoas que eu achava tão boas, que eram tão acolhedoras. Será que eles não viam a sujeira toda? Seja como for, eles eram parte daquilo, justamente por cativar, nos convencendo de que podíamos confiar neles.
Separando o joio do trigo
Na época em que me envolvi com aquele grupo, eles reverenciavam o Papa. Tudo bem que o Papa era outro, só que a justificativa que eles mesmo davam era de que o Papa era escolhido sob os desígnios de Deus, ou seja, não importava quem estivesse lá, a autoridade dele seria inquestionável.
A ousadia do Papa Francisco, que defendeu até o final aquilo que acreditava, escancarou um fato: para esse grupo, a infalibilidade papal só era válida quando atendia a seus próprios interesses.
Tendo os Arautos como a referência dentro do catolicismo com a qual tive mais contato, passei um bom tempo vendo a Igreja com maus olhos. Para mim, era uma instituição movida pela ambição, cujo único objetivo era angariar fiéis. Nesse sentido, os Arautos estariam justificados: eles sabiam como convencer jovens a se converterem, mesmo que de modo forçado. Felizmente, o Papa deixou claro que esses métodos não são aceitáveis dentro da Igreja.
Papa Francisco também provou que a Igreja pode ir muito além de apenas defender a si mesma e expandir o seu domínio, ao dar maior prioridade a questões sociais e ambientais.
Até onde me informei, o novo Papa pretende seguir a mesma linha de Francisco. Cá entre nós, é a única forma da Igreja manter sua integridade. Qualquer sinal de um retorno ao conservadorismo característico de papados anteriores seria um claro retrocesso, e quero crer que não seria aceito pelos católicos de hoje.
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Links dessa edição
Reportagem do Intercept sobre os Arautos do Evangelho
Decisão da Justiça de SP sobre o retorno das crianças do internato, em reportagem no G1
Matéria da BBC sobre o conflito dos Arautos do Evangelho com o Vaticano
Editorial de Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, sobre a ética de Papa Francisco
Até a próxima!
Nossa adoro este assunto, têm vídeos do YT com ex-alunos dos arautos cada coisa mais bizarra que outra.