Datas especiais
O quarto mês do calendário lunar tibetano, que equivale esse ano ao período de 08 de maio a 06 de junho, é marcado pelo Saga Dawa. Na tradição tibetana do budismo, esse é considerado o mês mais importante do ano, por ter sido o mês em que ocorreu o nascimento, a iluminação e o parinirvana (passagem para além dos ciclos de renascimento e morte) do Buda.
Durante esse período, especialmente no dia da lua cheia, que por sinal é hoje, dia 23 de maio, se diz que os resultados cármicos das nossas ações são multiplicados milhões de vezes. Sendo assim, é aconselhável dedicar um esforço extra para praticar a virtude e evitar ações prejudiciais.
Uma mente muito científica olha essa multiplicação com desconfiança. Quais são os parâmetros para medir os resultados cármicos de uma ação? O que são resultados cármicos, para começo de conversa?
Tenho pouquíssimo entendimento do tema, e nem me importo muito em entender. O que importa é como a lembrança de que estamos nesse período reverbera na minha mente.
Faço aqui um paralelo com algo que acontecia no início de minha adolescência. Toda vez que eu passava um tempo no site assutador.com (alô millennials), a exposição a tanto conteúdo sinistro me fazia sentir claramente que havia um vulto atrás de mim, me observando. Não importa se ele efetivamente estava lá, o efeito na minha mente e no meu corpo, que refletia na minha atitude, era evidente.
Desde que começou o Saga Dawa desse ano, me peguei muitas vezes tomado por emoções como raiva ou medo, e então, eu penso: estou tomado pela raiva/medo durante o Saga Dawa. Não há nada intrinsecamente errado nessas emoções, o problema é quando elas nos dominam e impulsionam nossas ações. A lembrança do Saga Dawa atua como um aviso de cuidado, como o “tem certeza que deseja continuar?” que aparece quando você vai fazer alguma alteração significativa no computador.
E aqui, a multiplicação dos resultados cármicos ganha uma lógica adicional. Se estou consciente do dano que posso causar a mim mesmo e aos outros, e mesmo assim, sigo meu impulso, minha consciência fica mais pesada, além da confiança de que é possível mudar minhas tendências enfraquecer. Se até quando estou consciente do que posso mudar, eu não faço um esforço nessa direção, quando é que eu vou fazer?
A prática é agora
Tenho sonhado com pessoas com quem tive meu último contato há muitos anos. Muitas vezes, acordo com uma sensação de pesar, não porque tive algum problema com as pessoas especificamente, mas porque elas me lembram uma época da minha vida carregada de arrependimentos.
Nada do que aconteceu pode ser alterado. O único momento em que posso agir é no agora. Posso, inclusive, trabalhar minha relação com o passado, ou seja, como lido com essas lembranças que chegam sem pedir licença.
As datas especiais nos puxam para o presente. O Saga Dawa é agora, está acontecendo agora. A ideia de que algo especial está acontecendo traz uma nova disposição.
Por um lado, o ideal seria que tratássemos cada momento das nossas vidas como o mais importante. Essa é a instrução do Roshi Shunryu Suzuki, no livro Mente Zen, Mente de Principiante:
Se você quer expressar sua verdadeira natureza, deve fazê-lo de forma natural e apropriada. Mesmo o balançar do corpo para a direita e esquerda quando você se senta e se levanta do zazen é uma expressão de você. Isso não é uma preparação para a prática nem um relaxamento após a prática; é, isso sim, parte da própria prática. Portanto, não devemos fazê-lo como uma preparação para alguma outra coisa. O mesmo se aplica à sua vida diária. (…) O que quer que você faça deve ser a expressão da mesma atividade profunda. Nós devemos apreciar o que estamos fazendo. Não há preparação para outra coisa.
Porém, como nos esquecemos disso, as datas sagradas estão aí para nos relembrar. As várias tradições budistas vão imantando essas datas a partir de lembretes específicos. No calendário tibetano, todo mês, o décimo dia do calendário lunar é consagrado a Padmasambhava, Guru Rinpoche, o mestre que levou os ensinamentos de Buda para o Tibete. Na tradição Soto Zen, celebra-se a iluminação do Buda no dia 08 de dezembro.
E como o lembrete não precisa estar restrito às datas budistas, cada um pode aplicá-lo às datas que mais fizerem sentido na sua vivência: seu próprio aniversário, Natal, dia da Terra. São datas que carregam uma energia, cada uma delas simbolizando um acontecimento ou causa significativa.
Roshi Shunryu Suzuki, que mencionei a pouco, nasceu no dia 18 de maio de 1904, como lembrou a Sanga do San Francisco Zen Center, templo fundado pelo Roshi e seus alunos.
O Saga Dawa é estimado pelos budistas porque remete a eventos que possibilitaram que os ensinamentos de Buda não só viessem ao mundo, mas beneficiassem inúmeras pessoas. Se Buda não tivesse nascido, não teria dado ensinamentos. Se não tivesse atingido a Iluminação, suas palavras seriam meramente teóricas. Se não tivesse entrado no Parinirvana, não transmitiria aos alunos o ensinamento de que a nossa verdadeira natureza está além de vida e morte.
Buda não inventou a Iluminação, ele apenas reconheceu que sua natureza já é iluminada, assim como a de todos os seres. Nesse sentido, Buda não tem nada de especial em relação a nós. Buda olha pra gente e vê incontáveis Budas.
Porém, como não vemos Budas quando olhamos pra nós mesmos, Buda é especial. Por isso celebramos a sua Iluminação. Celebramos que alguém acordou e desvendou nossa verdadeira natureza. Celebramos que isso está disponível para nós, na forma de uma linhagem de seres que seguem o mesmo caminho que o Buda.
Isso está disponível para nós. Mais uma vez citando Roshi Suzuki:
Quando praticamos zazen, restringimos ao máximo nossa atividade. Expressamos a natureza universal apenas mantendo a postura correta e a concentração no sentar. Então nos tornamos Buda e expressamos sua natureza. Em vez de termos um objeto de devoção, simplesmente nos concentramos na atividade que temos a cada momento. Quando se prostrar, deve apenas prostrar-se, quando se sentar, apenas sentar-se, enquanto come, apenas comer! Desse modo, a natureza universal estará presente. Em japonês diz-se ichigyo-zammai ou “samádi de ação única”.
Não importa qual a situação, você não pode desconsiderar o Buda porque você mesmo é o Buda. Só esse Buda poderá ajudá-lo plenamente.
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